Autocustódia: A Ilusão da Liberdade — Parte I

Autocustódia: A Ilusão da Liberdade — Parte I

Traduzido do inglês

Uma das maiores inovações introduzidas pelas criptomoedas é a capacidade de manter os seus próprios ativos. Pergunte-me o que torna a Bitcoin verdadeiramente valiosa e eu dir-lhe-ei isto: "O mais valioso é que ninguém — nem sequer o governo — pode tirá-la de mim." Muitas pessoas sentem o mesmo. É por isso que a "autocustódia" se tornou uma palavra da moda no marketing cripto. Sinaliza autonomia e controlo — e funciona. O termo chama a atenção porque as pessoas no mundo cripto se importam profundamente com ele.

Mas o que significa realmente a autocustódia? À primeira vista, parece uma pergunta simples: possui verdadeiramente o que a sua carteira mostra? É livre de usar os seus ativos quando e como quiser?

Porque essa é a principal diferença. Com a autocustódia, tem liberdade. Sem ela, o que tem é um direito — e todo o direito requer a obrigação de outra pessoa. Se essa outra parte não cumprir a sua parte, o seu "direito" é apenas uma ficção educada.

Por detrás das afirmações confiantes sobre a autocustódia, muitas vezes esconde-se um acordo frágil construído sobre dependências e confiança. O termo "autocustódia" no mundo cripto de hoje não é tão claro como parece.

Um Cofre de Ouro vs. um Banco: Os Primeiros Guardiões da Riqueza

É mais fácil compreender a autocustódia se recuarmos alguns séculos e imaginarmos um comerciante a regressar a casa com os seus ganhos — uma bolsa de moedas de ouro — a perguntar-se onde as esconder. Se ele guardar o ouro ele próprio — debaixo das tábuas do soalho ou num cofre trancado — isso é autocustódia. Se ele levar as moedas para um banco e receber um recibo em troca (uma espécie de nota bancária primitiva), isso já não é autocustódia: as moedas não estão sob o seu controlo — o banco é que as detém agora.

O valor dessa nota bancária dependia inteiramente da credibilidade do banco. Enquanto o banco fosse fidedigno, tudo estava bem — a nota podia ser trocada pelo seu valor nominal, tal como o ouro que representava. Mas se o banco entrasse em colapso, a nota tornava-se sem valor.

Notas Bancárias: Das Promessas ao Poder do Estado

Mas e os tempos modernos? Alguém hoje descreveria uma nota bancária como um instrumento financeiro de custódia? Provavelmente não — porque a própria natureza das notas bancárias mudou fundamentalmente. A emissão de papel-moeda é agora regulada pelos governos. O direito de emitir notas bancárias foi transferido para os bancos centrais, e cada nota tornou-se moeda legal oficial. O seu valor já não é apoiado pelo ouro num cofre — é apoiado pela lei.

Os governos declaram que a sua moeda deve ser aceite para pagamentos dentro da sua jurisdição. Ninguém pode legalmente recusá-la para saldar dívidas ou comprar bens. Em países como a Áustria e a Suíça, as leis exigem explicitamente que as empresas aceitem euros ou francos físicos em dinheiro. Então, se sabe que tudo o que está à venda no seu país pode ser comprado com essas notas, por que precisaria do ouro que outrora as apoiou? Nem todos os vendedores aceitam ouro, mas todos os vendedores aceitam notas bancárias.

E quando guarda essas notas bancárias num cofre em casa — ou mesmo debaixo do colchão — não é essa essencialmente a versão moderna de manter um cofre de ouro? O dinheiro físico que guarda pessoalmente está totalmente sob o seu controlo. Parece muito com a autocustódia: não está a confiar a nota a mais ninguém e não está a depender de um banco ou de sistemas eletrónicos. Se a esconder bem, nem o banco nem o governo a podem tirar de si.

Em casa, torna-se o seu próprio banco: garante a segurança do seu dinheiro e decide quem fica com a chave do cofre. Alguns países até enfatizam a importância dessa escolha. Por exemplo, a legislação austríaca e suíça protege o direito dos cidadãos de pagar em dinheiro como alternativa às transações digitais.

Então, podemos chamar manter notas bancárias em casa uma forma de autocustódia? A maioria das pessoas provavelmente faria isso. O que começou como um certificado para armazenamento de custódia tornou-se, indiscutivelmente, o exemplo moderno mais claro de autocustódia — está a deter algo de valor sem intermediários.

Mas há uma ressalva: os governos não são eternos, nem as suas leis. A nota bancária que todos são obrigados a aceitar hoje pode deixar de ser considerada dinheiro amanhã. E quando isso acontecer, ninguém será obrigado a trocá-la por bens ou serviços.

Controla o papel físico, mas não o que lhe dá valor. O papel em si não vale nada. Todo o seu valor vem do poder do estado — e da vontade — de impor a sua aceitação como dinheiro.

Não pode dizer o mesmo sobre o ouro. Para muitos participantes no mercado, o ouro tem valor subjetivo, independentemente de qualquer governo o reconhecer ou não.

Então, se a questão central da autocustódia é se realmente possui o valor subjacente que vê na sua carteira, então, dependendo da sua perspetiva, mesmo deter dinheiro pode não se qualificar. Quando recebe uma nota bancária em troca dos seus bens ou trabalho, está a fazer algo muito semelhante àquele velho comerciante que entregou o seu ouro ao banco: está a entregar algo com valor intrínseco em troca de um pedaço de papel cujo valor depende inteiramente da credibilidade do seu emissor.

Dinheiro no Banco: Quem o Detém Realmente?

Agora, e os saldos das contas bancárias? À primeira vista, isso pode parecer o equivalente moderno mais próximo daqueles antigos recibos bancários que o comerciante teria recebido pelo seu ouro. Depositamos algo de valor real (para muitos de nós, isso é dinheiro) e, em troca, recebemos números num ecrã que confirmam o nosso direito de retomar esse dinheiro.

Não tem controlo direto sobre o dinheiro em si. Mas precisa sequer dele? Em muitos países, a lei exige que os pagamentos não monetários sejam aceites para saldar dívidas, pagar salários ou comprar bens e serviços. Pense nisso: no seu país, um funcionário pode exigir que lhe seja pago em dinheiro? Ou é, vice-versa, que a lei exige que os salários sejam pagos por transferência bancária?

Se todos são esperados para aceitar pagamentos bancários — e talvez até exigido que o façam — então por que se preocupar com o dinheiro físico? Torna-se quase tão desnecessário quanto o ouro, uma vez que as notas bancárias foram declaradas moeda legal. E se as pessoas mais ricas do mundo têm milhares de milhões sentados em contas bancárias, isso não significa necessariamente que podem entrar e levantar milhares de milhões em dinheiro. De facto, geralmente não podem.

O dinheiro bancário moderno não é uma promessa de entregar algo físico. Ele é a moeda legal — tal como o dinheiro, mas muito mais fácil para os governos monitorizarem e controlarem. Se o estado congelar a sua conta bancária, então, para todos os efeitos práticos, o seu dinheiro deixa de existir. Claro, ainda pode ver o saldo na sua aplicação bancária — mas não conseguirá fazer nada com ele.

E o que significa "deter" esse dinheiro hoje em dia? Geralmente resume-se a armazenar os dados: o número do seu cartão, as suas credenciais de login e os dispositivos onde estão guardados. E essa parte, gere-a você. Este não é o tipo de acordo de custódia que o velho comerciante tinha quando deixou ouro num cofre de banco. É algo completamente diferente.

Imagine isto: depois de algumas bebidas a mais, deixa o seu telemóvel desbloqueado num bar com a sua aplicação bancária aberta. Alguém transfere todos os seus fundos para uma organização terrorista, que imediatamente os levanta. Talvez eventualmente convença as autoridades de que não estava a apoiar o terrorismo — mas receberá o seu dinheiro de volta? Provavelmente não. Não estava a ser salvaguardado por um banco — foi "armazenado" por si.

Ainda assim, apesar desta responsabilidade pessoal, não chamaria a isso autocustódia. Porque embora possa ser você a "deter" o acesso, não tem a liberdade de usar os fundos incondicionalmente. O seu controlo é limitado por sistemas e instituições — e essa é a diferença.

Stablecoins: "Notas Bancárias" Digitais com uma Reviravolta

Agora vamos transportar essa analogia para o mundo cripto. Suponha que possui uma stablecoin — um token de blockchain indexado ao valor de uma moeda fiduciária, como o dólar americano. Pegue na USD Coin (USDC), emitida pela empresa Circle, como exemplo. Se for uma entidade legal registada e tiver passado nas verificações de conformidade da Circle, a Circle comprometer-se-á realmente a resgatar cada USDC que detenha por $1 em dinheiro bancário.

Essa configuração parece quase idêntica a exemplos históricos de banca de custódia. Quem originalmente cunhou esses tokens USDC deu algo de valor do mundo real — nomeadamente, dinheiro bancário — em troca. E o token em si representa uma promessa: a obrigação da Circle de devolver esse dinheiro bancário. A ressalva é que o resgate só está disponível para determinadas partes — nomeadamente, empresas verificadas que cumprem as normas de conformidade da Circle.

Isso é autocustódia? Definitivamente não. Este é um exemplo clássico de armazenamento de custódia. Então, por que é que as bolsas descentralizadas, onde todas as transações são liquidadas em USDC, afirmam oferecer autocustódia total?

Pegue nisto, por exemplo:

Tweet da dYdX sobre autocustódia

E até mesmo o site oficial da USDC:

“Autocustódia” em usdc.com

Como podemos falar sobre autocustódia quando a USDC se baseia no que é essencialmente uma estrutura de custódia de terceira ordem?

Bem, é a mesma dinâmica que vimos antes: se já tem USDC, precisa realmente desses dólares fiduciários a apoiá-lo? Para a maioria dos detentores, a resposta é não. A grande maioria dos utilizadores de USDC não são empresas registadas e não passaram na revisão de conformidade da Circle. Portanto, não conseguem aceder ao apoio, mesmo que quisessem.

E, no entanto, a USDC tem valor real para eles. Pode trocá-la instantaneamente por milhares de outras criptomoedas na rabbit.io. Pode gastá-la em centenas de lojas online que aceitam stablecoins.

A verdadeira força das stablecoins como a USDC reside na sua liquidez. Ninguém é legalmente forçado a aceitá-las, mas muitos comerciantes aceitam — porque os pagamentos com stablecoins são rápidos, baratos e acessíveis globalmente.

Então, se acredita que uma stablecoin tem valor real e independente — e não apenas como uma reivindicação sobre dinheiro bancário — também pode chamar deter esse dinheiro na sua carteira uma forma de autocustódia.

Pontes e Novas Cadeias: Onde Termina a Autocustódia?

O mundo cripto é diverso e sem fronteiras: os tokens podem mover-se entre blockchains. Digamos que detém USDC na Ethereum, mas quer usá-la noutro lugar — talvez para publicar margem para perpétuos na dYdX Chain, Paradex Chain ou na moderna rede Hyperliquid, onde os tokens em ponte são a norma.

Para fazer a mudança, envia a sua USDC para uma ponte na Ethereum. Lá, é bloqueada ou queimada e, em troca, recebe um token de "espelho" na cadeia de destino — essencialmente um recibo que diz que os tokens originais estão a ser mantidos para si.

Aqui, encontramos outra camada de custódia: alguém deve estar a deter os tokens originais enquanto usa a versão em ponte. Por vezes, isso é um contrato inteligente, mas noutros casos pode ser um endereço controlado por multisig gerido por uma empresa ou um grupo de validadores. Se algo correr mal — seja um hack, uma falha interna ou uma fraude pura e simples — os tokens de ponte podem perder o seu valor, porque o colateral subjacente desapareceu.

Então, ao mudar para outra cadeia, adicionou uma nova camada de confiança. Quando a sua USDC ainda estava na Ethereum, a cadeia de custódia envolvia o emissor (Circle), o banco que detinha as reservas e o sistema fiduciário. Mas, assim que atravessa a ponte, também tem de confiar na segurança da ponte — e na credibilidade daqueles que a operam.

Onde é que a autocustódia para, então? Tecnicamente, ainda controla os seus tokens em ponte — as chaves são suas. Mas tente encontrar liquidez para USDC em ponte na dYdX Chain. Fora da própria bolsa dYdX, é praticamente inútil. Mesmo a Circle não resgatará tokens em ponte — porque eles não são a sua obrigação, são a obrigação da ponte.

Portanto, quando move os seus fundos para outras blockchains — seja a dYdX Chain, a Hyperliquid, a Paradex Chain ou alguma solução L2 — ainda "detém as chaves", mas não para o ativo original. Detém uma reivindicação sobre uma reivindicação sobre uma reivindicação.

A sua chave e a custódia multicamadas

No caso da USDC, isso parece-se com algo como isto:

  1. Na camada base, o dinheiro físico só é valioso porque o estado impõe a sua aceitação.
  2. Os depósitos bancários dependem desse dinheiro físico e são mantidos nos bancos.
  3. Os tokens USDC na Ethereum são apoiados por esses depósitos bancários e emitidos pela Circle.
  4. A USDC em ponte noutras cadeias são IOUs da ponte que alegam valer a USDC original.

Se as etapas de 1 a 3 forem apoiadas por utilidade do mundo real ou proteções legais, a etapa 4 não é. O valor desse token final depende puramente da fé na infraestrutura da ponte. Nenhum apoio da Circle. Nenhum recurso legal. Apenas código e confiança.

Portanto, de qualquer ângulo que olhe para ela, essa última etapa claramente cai fora do reino da autocustódia.

Censura da Rede: E Se Detiver as Chaves Mas Ainda Não Conseguir Gastar?

Autocustódia significa que detém as chaves. Com as chaves, pode assinar transações. Mas aqui está o truque — só porque pode enviar uma transação não significa que a rede a processará.

Os validadores ou mineradores numa blockchain podem recusar-se a incluir a sua transação num bloco. E se a rede não lhe permitir tornar-se um validador — ou tornar esse caminho praticamente inacessível — então há muito pouco que pode fazer para resistir.

Em algumas blockchains como a Hyperliquid e a Paradex Chain, o conjunto de validadores é pequeno e estreitamente interligado. Noutras redes, juntar-se como validador requer ser aprovado ou delegado por alguém que já esteja dentro do círculo. Esse tipo de controlo de acesso impede que atores independentes entrem e ajuda a preservar a conluio dos validadores — tornando a censura da transação muito mais provável.

Então, aqui está a pergunta difícil: De que serve a autocustódia se a rede não o deixar usar os seus ativos? É uma questão séria. A autocustódia garante que só você controla as chaves — mas a liberdade de transacionar depende inteiramente da descentralização e neutralidade da rede.

Se a blockchain for centralizada ou governada por um cartel, a sua carteira pode transformar-se numa gaiola dourada. Os seus fundos são tecnicamente seus, mas usá-los requer permissão de guardiões invisíveis.

É por isso que a autocustódia só funciona verdadeiramente em redes que são resistentes à censura — e, idealmente, apenas para ativos que têm valor real e independente, não apenas reivindicações sobre a obrigação de outra pessoa.

O Ideal da Autocustódia — É a Bitcoin?

Neste ponto, pode parecer que todos esses problemas apenas se aplicam a ativos tokenizados e blockchains fortemente regulamentadas. Mas e se estivermos a falar sobre a Bitcoin — um ativo cujo valor não depende da promessa de ninguém e uma rede onde qualquer pessoa pode tornar-se um minerador, desde que esteja disposta a pagar por ASICs e eletricidade?

Nesse caso, certamente não há espaço para problemas de autocustódia… certo?

Bem, não exatamente. Mesmo dentro do ecossistema da Bitcoin, alguns serviços afirmam ser “não custodiados” no seu marketing — mas, na prática, não oferecem o tipo de liberdade que esperaria da Bitcoin.

Para ser justo, os desafios na Bitcoin são muito diferentes daqueles que vemos com as stablecoins em blockchains centradas na bolsa. Não se tratam de custodiantes ocultos ou estruturas de confiança multicamadas. Mas eles existem, no entanto — e valem a pena ser explorados.

Abordarei esses problemas na segunda parte deste artigo.

Será publicado aqui na próxima semana.
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